A gestão de transportes após a tempestade político-econômica

Luiz Afonso dos Santos Senna (*)

A neve e a tempestade matam as flores, mas nada podem contra as sementes. (Khalil Gibran)

Imagino mais ou menos assim a tradução de uma frase de George Bernard Shaw: “existem duas tragédias na vida: uma é não saciar os desejos de nosso coração; a outra é saciá-los”. A discussão sobre as agências reguladoras, ainda em seus estágios primários, e por absoluta incompreensão por significativa parte do poder político, tem dificultado a chegada ao país da moderna gestão do Estado e à estabilidade do ambiente para investimentos privados. A infraestrutura de transportes necessita urgentemente, por parte do poder público, de uma atuação orgânica, integrada e eficiente do setor.

A partir do Acordo de Bretton-Woods, após a Segunda Guerra Mundial, até a década de 1970, a economia mundial manteve-se em relativa boa forma, sem maiores desequilíbrios. As velhas, porém sempre atuais questões da raça humana (como o aumento da distância entre ricos e pobres, as tensões políticas, a balança comercial das nações em desenvolvimento, seus históricos problemas de desenvolvimento, etc), mantiveram-se presentes, mas a economia mundial, com instituições como o Banco Mundial, FMI, Nações Unidas e organizações afiliadas, funcionava bem, embora longe da perfeição.

A incapacidade do modelo keynesiana lidar com os novos problemas que surgiam, levaram a mudanças graduais a partir da segunda metade da década de 1970. Especialmente no início da década de 80, houve um renascimento da economia do século 19, agora com o codinome “economia de mercado”. Surgiram também novos termos, como liberalização, privatização e globalização. Porém, manteve-se como ponto focal o velho conceito de intervenção mínima do governo no funcionamento dos mercados. Contudo, as coisas não foram mais exatamente as mesmas do século 19. Houve novos desenvolvimentos, que definitivamente influenciarão a definição da estrutura na qual a economia mundial funcionará no futuro próximo. Estes podem ser agrupados sob os títulos: liberalização dos mercados, poder crescente de empresas e capitais transnacionais, diminuição do papel das nações nas questões econômicas, globalização em seu sentido real, e a mudança na natureza da estrutura das economias. Poderia ainda ser acrescentado a estas, as questões ambientais, o desenvolvimento tecnológico e o surgimento de países com rápida industrialização, no que até então eram considerados países periféricos.

Muito embora as questões ligadas à privatização e à liberalização estejam liderando as agendas das nações, o processo em si não é uma panaceia. As nações mais pobres enfrentam diferentes tipos de problemas em seu processo de desenvolvimento. Primeiramente, precisam construir seus ativos de infraestrutura, tanto em transportes como em outras áreas. Também, é fundamental a constatação de que a infraestrutura no setor transporte é potencialmente monopolística e de propriedade pública. Tal fato é verdadeiro também no caso dos países desenvolvidos.

É fundamental que os países em desenvolvimento estruturem institucionalmente o setor de transportes. Esta infraestrutura existe e é eficiente nos países desenvolvidos, mas é um ativo inexistente (no mínimo precário) nos países emergentes. Para que o desenvolvimento sustentável e desejável possa ocorrer em países como o Brasil, especificamente para que o setor transportes possa contribuir para o processo de desenvolvimento geral, é necessário desenvolver esta estrutura institucional produtiva para o setor.

De uma forma geral, a sustentabilidade da economia pode estar sendo minada por duas deficiências: incompetência para manter os ativos existentes, e incompetência na utilização eficiente destes ativos. A incompetência aplica-se tanto para os ativos de infraestrutura quanto para os operacionais, e tem suas raízes em sistemas de incentivos defeituosos, muitas vezes alimentados por inadequada capacidade institucional.

Por infraestrutura institucional do setor transporte, entende-se uma rede que se estende por todo o setor de transportes, envolvendo organismos públicos e privados, departamentos, instituições e organizações engajadas na construção, oferta, operação e regulação de transportes. As funções dessas instituições incluem a propriedade e controle da infraestrutura dentro dos subsetores de transportes, e o sistema de responsabilidade para a construção e operação da infraestrutura. Adicionalmente aos departamentos e órgãos de governo, devem ser incluídos as agências reguladoras independentes, companhias estatais, associações comerciais e todos os tipos de organizações privadas. É também fundamental a participação das universidades e outras instituições de pesquisa e ensino, uma vez que, em uma indústria como a de transporte, o papel da pesquisa e desenvolvimento (P&D), assim como o treinamento da força de trabalho constituem-se em elementos chave para seu sucesso a curto, médio e longo prazo. Atingir esses objetivos não se constitui em tarefa fácil, porém nem tão pouco impossível. Uma infraestrutura institucional apropriada promoverá a difusão deste entendimento entre os membros da comunidade de transporte do país.

A falta de uma visão sistêmica para o setor transportes vem de longa data no Brasil. No momento atual, que se assemelha a uma enorme tormenta política e econômica – a chamada tempestade perfeita, esses aspectos ficam ainda mais evidentes.

O tratamento recente dado pelo poder executivo às agências reguladoras em nada contribui para que este objetivo seja atingido. A criação das agências foi um importante passo na direção da modernização do Estado brasileiro. As ações que buscaram capturar as agências reguladoras e transformá-las em meros braços operacionais do governo foram de fato um retrocesso, que agora precisa ser urgentemente resgatado.

Se não houver este resgate, não haverá a criação de um ambiente de desenvolvimento sustentado do setor, uma vez que mais uma vez ficará explícito o não comprometimento do poder executivo com uma visão sistêmica de médio e longo prazo no que se refere aos problemas e soluções

(*) PhD em Transportes pela University of Leeds, Pós-doutorado pela University of Oxford, Formação Executiva na Harvard University, Engenheiro Civil. Professor titular da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

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