A lama suja que abalou um porto

No dia 14 de abril de 2014, um trecho da praia do Cassino foi coberta de lama Crédito / SOS Cassino

Por Guilherme Antônio Arruda

A segunda-feira, 14 de abril de 2014, amanheceu com céu aberto e temperatura na casa dos 12 graus na cidade de Rio Grande, litoral sul do estado. Parecia ser o início de mais uma semana normal não fosse uma visão assustadora. Um trecho da praia do Cassino apareceu coberto de lama, envolvendo uma faixa de quase 7 km. O lixo teria origem em um Sítio de Descarte de sedimentos localizado 16 km da costa e levado, possivelmente, por correntes marítimas. Quatro meses antes, uma dragagem de manutenção realizada no porto retirou 1,6 milhão de m³ de detritos.

Os sedimentos deixados numa fração de 0,03% de toda praia do Cassino, contudo, foram suficientes para escancarar três falhas graves: o modo descuidado como as autoridades administravam os procedimentos ambientais no porto de Rio Grande; comprometeu a realização de uma nova dragagem para retirada de 18,7 milhões de m³, e atrapalhou a eficiência no escoamento da safra de grãos, limitando a 60 mil toneladas a capacidade transportada por navio.

Nos quatro anos seguintes aquela triste segunda-feira de 2014 os ventos sopraram de todas as direções. Foi uma sucessão de erros, acertos e mal-entendidos para recolocar o porto na condição de plataforma atraente e confiável para negócios.

Duas décadas de irregularidades

Para começar, a lama causadora do acidente no Cassino, dividiu opiniões mesmo entre os integrantes de um grupo de especialistas formado por estudiosos da Universidade Federal de Rio Grande (Furg) para encontrar as causas. Houve quem discordasse da tese da dragagem. Desde 1999, na verdade, há uma discussão efervescente, cujo centro do debate é investigar se a lama é antrópica (que resulta da ação do homem) ou é natural (provocada por fenômenos como chuvas, cheias, ciclones e erosão do estuário pela boca da barra).

Paralelamente a discussão acadêmica, um grupo de ativistas do município decidiu criar, ainda em 2014, a organização não governamental SOS Cassino, orientada pelo princípio de que a legislação ambiental não pode ter opiniões divergentes. Defensores de uma dragagem sustentável, a ONG buscou no Ministério Público Federal o amparo legal para cobrar respostas da lama no Cassino. É bom lembrar que, à época, já estava em curso em Brasília a licitação para dragagem de 18,7 milhões de m³.

Parem as máquinas

A visibilidade provocada pela ação da SOS Cassino surtiu efeito exatamente em Brasília. Desde a assinatura do contrato para dragagem, ocorrido em julho de 2015 entre União e o consórcio vencedor, formado pela Odebrecht e Jan de Nul, as obras ficaram emperradas devido a ação firme do Ibama sob a alegação do não atendimento de cerca de 50 itens condicionantes, indispensáveis para renovação da Licença Ambiental. Com a proporção assumida pelo caso, o órgão decidiu exigir o cumprimento integral dos itens condicionantes.

Itens condicionantes é formado por um conjunto de monitoramentos ambientais, como a disposição do material dragado, relatórios sobre impacto social e análise das condições da água, pontos que vinham sendo descumpridos há anos pela Superintendência do Porto de Rio Grande (Suprg), alguns até, suspeita-se, com certa flexibilização por parte do próprio Ibama. Até então, a Superintendência priorizava alguns condicionantes e deixava outros para trás.

Um histórico de negligências

Sete anos antes desse episódio, o Ministério Público Federal já havia ajuizado uma ação civil pública contra o porto de Rio Grande pelo descumprimento de condicionantes e obteve na Justiça uma liminar que determinou o bloqueio de 10% da receita da Suprg, específica para realizar os itens condicionantes. Mensalmente, o porto foi obrigado a depositar em   uma conta da Caixa Econômica Federal (CEF) quantia na faixa de R$ 1 milhão. Nos meses de desempenho o valor alcançava R$ 1,8 milhão.

No início da atual gestão da Suprg o fundo possuía aproximadamente R$ 60 milhões. Com recursos em caixa, a Superintendência propôs a MPF um plano de atendimento as condicionantes, com entrega de relatórios mensais, fiscalizados pelo Ministério Público Federal. Nestas condições, em julho de 2015, o juiz estancou o bloqueio, permitindo que a administração utilizasse os recursos para outras despesas e se comprometesse a prestar conta.

Para entender a gravidade do assunto, somente agora o MPF teve conhecimento dos documentos da dragagem realizada em Rio Grande em 2009. Ou seja, quase uma década após a conclusão da obra, conta Helder Salvá, da SOS Cassino, acrescentando que várias condicionantes não foram atendidas, além de atos feitos sem a autorização do órgão licenciador. Como ninguém, ao que se sabe, foi multado ou recebeu auto de infração, a SOS Cassino pretende agir.

A pressão que vem de fora

Com a dragagem de 2015 atrasada e os indicativos de que se arrastariam por um bom tempo, os usuários do porto gaúcho – principalmente, os produtores de soja – iniciaram um movimento de pressão, intensificado em 2016, exigindo providências para tornar as operações mais ágeis. A direção da Superintendência até se empenhou para equacionar a situação, mas topava com diferentes interpretações entre Ibama e o Ministério dos Transportes. O pior é que as interpretações demandavam tempo.

Em outubro de 2017, numa reunião em Brasília com representantes da Suprg, da SOS Cassino e do Ibama, ficou claro que o atual Sítio de Descarte não é considerado estável e seguro para armazenar milhões m³ de sedimentos de dragagens em mar aberto. Ficou a sugestão para criação de um novo local de despejo, com outras alternativas, mediante fundamentos consistentes, contemplando o uso de traçadores, forte monitoramento, batimetria, fiscalização, entre outros itens.

Aproveitamento dos resíduos

Helder Salvá, que representou a SOS Cassino nessa reunião de Brasília, comenta que em países de primeiro mundo, os detritos não são tratados como resíduos – como ocorre no Brasil – mas como produtos, utilizados em aterros, como alicerce na construção civil, na reposição de área onde há erosão e na revitalização de ilhas. Aqui é simplesmente descartável.

Meses após esse encontro, o Ibama renovou a Licença Ambiental, mas descartou a primeira versão do Plano de Dragagem. Quando caiu a ficha da diretoria da Suprg que o órgão licenciador não autorizaria a dragagem completa – retirada de 18,5 milhões de m³ – surgiu a ideia de fazer a dragagem por partes, sugestão que, aliás, partiu do próprio Ibama. O fatiamento tinha mais chances de ser aprovado – como de fato aconteceu.

Depois de acumular toneladas de críticas, no dia 9 de maio passado (ler matéria aqui) o Ibama enviou para a Suprg notificação aprovando o Plano de Dragagem para retirada de 3,5 milhões de m³ de sedimentos em três trechos críticos. A estimativa é de que as obras iniciem no final de julho. O volume representará 18% do total. Será a primeira dragagem em Rio Grande após 42 meses. É uma ação emergencial. Mas este é, lamentavelmente, o modo como a estrutura funciona – emergencialmente.

 

Crédito / SOS Cassino
Crédito / SOS Cassino
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