A crise energética e a MP 1031

Ademar Cury da Silva (*)

Passados vinte anos, novamente o fantasma do racionamento abala as estruturas do setor elétrico brasileiro, com seus possíveis reflexos na economia, já combalida pela pandemia.

Esta é a realidade atual, previsível e evitável, mas que, infelizmente, não foi prevista no planejamento do Setor Elétrico Brasileiro (SEB).

Nas justificativas para a situação atual, autoridades e analistas chegaram a dizer que, apesar da crise, o SEB evoluiu e ficou mais robusto nos últimos anos, por ter reduzido a dependência de hidrelétricas, de 85% para 61%, substituídas pela expansão de fontes limpas e renováveis (eólicas, solares e biomassa), mais termoelétricas.

Com a devida vênia, nossa avaliação é de que a redução da participação das hidroelétricas foi uma das causas, se não a mais significativa, para termos chegado ao atual limite de oferta de energia elétrica.

Faltaram hidrelétricas na matriz elétrica, PCHs, UHEs e, principalmente, novos reservatórios, solução natural de crescimento sustentado para qualquer país do mundo que ainda tenha potencial hidráulico a explorar e, particularmente, para o Brasil, com seu imenso potencial nesta condição.

Crises hídricas, em qualquer bacia hidrográfica, mesmo no limite histórico dos últimos 90 anos, como a atual, que atinge as regiões sul, sudeste e centro oeste, são sempre possíveis e devem ser consideradas no planejamento.

No passado recente, quando as hidrelétricas representavam 90% da matriz, tínhamos reservatórios plurianuais, em todas as regiões do país, conectados por linhas de transmissão estruturantes que representaram, e ainda representam, importantes otimizações de geração, dada a diversidade do regime de chuvas de nosso país continental.

Se tivéssemos, por exemplo, Belo Monte com reservatório, com certeza estaríamos em situação menos crítica do que a atual.

Porém, nos últimos anos, optou-se pela priorização de renováveis, eólicas, solares e biomassa, além de termoelétricas, em detrimento da renovável hídrica. As PCHs, que são tão ou mais renováveis que as demais, não são nem citadas nas propostas de descarbonização da matriz.

As fontes solar e eólica tem seu papel na matriz, mas necessitam de complementação para atender à sua intermitência.  Sem novas hidrelétricas (CGHs, PCHs e/ou UHEs) e sem novos reservatórios, precisaremos cada vez mais de térmicas fósseis para o equilíbrio da matriz, com evidentes custos, emissões e danos ambientais adicionais.

Portanto, o que estamos vivenciando é mais resultado das decisões equivocadas tomadas nos últimos 15-20 anos, no planejamento, na ampliação e na operação da matriz elétrica, do que da falta de chuvas.

E o futuro não nos traz alívio, como veremos a seguir, nas considerações sobre os próximos 10 anos.

O PDE 2030 indica, em resumo, uma ampliação de oferta para a próxima década de 32 GW, sendo 16 GW de eólicas, 10 GW de novas térmicas, 7 GW de hidráulicas, 5 GW de solares e considera também a desativação de 6 GW de térmicas a óleo ou carvão.,

Porém, é preciso analisar os seguintes dados adicionais:

  • No total de acréscimo de oferta, não estão incluídas a Auto Produção e a Geração Distribuída, que são tratadas no planejamento como redução de consumo. Este montante pode ultrapassar 20 GW na década.
  • Os 7 GW previstos de hidráulicas são, em sua maioria, re-potenciação de usinas existentes, além das poucas em construção ou planejadas, com pouca viabilidade ambiental, além dos 1,5 GW de novas PCHs, a partir de 2026.
  • No limite, se tivermos só 5,5 GW de novas térmicas e as PCHs, qual fonte dará a complementariedade necessária para as novas eólicas e solares, que, com a GD, podem somar 50 GW?
  • Mesmo que se viabilizem novos projetos hídricos diferentes dos indicados no PDE (e deveríamos buscar esta solução), dificilmente conseguiremos viabilizar uma grande, ou mesmo algumas médias hidroelétricas, com reservatório, nos próximos 10 anos, por falta de estudos e da necessária priorização da fonte.
  • Esta constatação é preocupante e inadmissível, visto que a única alternativa aceitável seria a retomada imediata da participação das hidráulicas com reservatórios na matriz elétrica brasileira, no lugar da dobradinha fósseis e intermitentes.

Porém, pior do que não ter feito é a inércia de não fazer. É preciso olhar para a frente e começar, desde já, a mudar esta realidade, planejando mais hidráulicas e reservatórios e incluindo maciçamente as PCHs na matriz, senão o problema só vai crescer.

Cabe aqui uma importante conexão do que foi dito acima com a MP 1031, já convertida na  Lei 14.182/2021, cuja finalidade original era a capitalização da Eletrobrás.

Mais do que do objeto principal, muito se falou e discutiu sobre as emendas incluídas no projeto original.

Estas emendas, pejorativamente (e indevidamente) chamadas de jabutis, na sua maioria representam a antecipação de disposições que constam em diversos projetos de lei para modernização do SEB, em andamento no Congresso já há algum tempo (originados na CP 033 MME de 2017), sem encaminhamento final até a presente data.

Os principais ajustes feitos pela Câmara dos Deputados na MP 1.031 se referem à viabilização de 8 GW de térmicas a gás a partir de 2.026 e de 2 GW de PCHs, a serem contratadas em leilões competitivos, por fonte, com preços tetos equivalentes aos dos leilões de 2019 corrigidos.

Vale lembrar também que este comando legal para contratação de novas PCHs já fazia parte das propostas do Projeto de Lei 1917 em tramitação na Câmara.

Como o próprio relator da MP 1031 comenta em seu relatório, esta proposta representa um resgate histórico das PCHs que, embora limpas e renováveis, com enorme potencial disponível, não foram reconhecidas pelos órgãos planejadores de gestões anteriores. Nos últimos anos, uma ínfima participação de apenas 1,5% da potência leiloada foi de PCHs.

Por outro lado, conforme acima comentado na análise do PDE 2030, esta é a única opção de novas hidráulicas que resta a ser viabilizada no curto prazo.

Nada justifica, portanto, os números publicados por opositores destas emendas, caracterizando o custo destas novas usinas como prejuízo, que serão repassados para as tarifas. Se estas usinas não forem construídas, outras, mais caras e poluentes, serão contratadas no seu lugar.

As PCHs têm atributos não quantificados na tarifa de geração, como duração de 100 anos ou mais, reversibilidade da outorga, cadeia produtiva 100% nacional, benefícios ambientais, econômicos e sociais aos municípios, geração próxima à carga, reduzindo perdas elétricas e necessidade de novas linhas de distribuição, entre outros.

Não contam com benefícios fiscais e institucionais concedidos outras fontes (só nos insumos as hidráulicas ficam em desvantagem de 38% em impostos) e sofrem com a “demonização” pelos órgãos ambientais e ONGs, com imposição de absurdas exigências de compensação, desproporcionais e desconectadas dos reais impactos e sem considerar os seus benefícios ambientais.

Uma licença ambiental de PCH pode levar 10 anos ou mais, enquanto a solar ou eólica, e mesmo as térmicas, têm suas licenças em até ou um pouco mais de um ano.

Por outro lado, entraves ambientais não resolvidos, podem reduzir o número de projetos que poderiam atender à ampliação de PCHs proposta, por não estarem disponíveis a tempo, prejudicando assim a única solução hidráulica restante.

Enfim, com este plano de construção de PCHs, finalmente temos uma perspectiva animadora, tanto para o setor quanto para o país, com atração de novos investimentos, criação de empregos e, principalmente, geração da energia necessária para o crescimento do país.

Mas é fundamental que os órgãos de governança do SEB e os institutos ambientais também façam sua parte.

É urgente agir e resolver os entraves das usinas hidrelétricas autorizadas até 50 MW.

(*)  Diretor Financeiro da ABRAPCH.
 

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