Edvaldo Santana (*)
O número é 254. Sintetiza quantas vezes foi modificada a Lei 10.438/2002, 80% delas depois de 2012. Mais de 20 alterações/ano. O artigo 13 da lei, com 155 das mudanças, é o dispositivo usado para criar a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), denominação do saco sem fundos dos subsídios do setor elétrico. Um detalhe emblemático: a lei foi quase sempre modificada por Medida Provisória (MP). O resultado dessa farra representa R$ 70 bilhões, apenas em três anos.
São várias as explicações para esse carnaval de subsídios. A qualidade das leis é uma delas. Em setores como os de infraestrutura, as leis são alvos fáceis do oportunismo. O que intriga, mas não tanto, é que o maior oportunista, no caso, é o governo. Grande parte das alterações na lei dos subsídios tinha como endereço a correção do uso inadequado dos recursos financeiros pelo próprio governo ou suas empresas. Marcos Lisboa, na Folha de 18 de abril, ilustra como o despreparo do governo acentua o oportunismo.
A contenda do momento envolve a já conhecida geração distribuída (GD) com solar fotovoltaica. Em 2012, com uma norma muito eficaz, a ANEEL criou um incentivo (isenção do pagamento pelo uso da rede) para quem instalasse energia solar para seu próprio consumo. Sinalizou que em 2015 verificaria os efeitos nas tarifas.
Em 2015 o estímulo foi ampliado. O Regulador permitiu que o consumo de energia acontecesse remotamente, em propriedade distinta daquela onde estava a fonte de geração, mas novamente avisou que em 2019 analisaria os efeitos. E o fez. Mostrou que, no ritmo de então, os subsídios ultrapassariam de R$ 55 bilhões até 2035. Era necessário um freio de arrumação.
Não agradou. Os usuários dos subsídios passaram a “gostar do jogo”. Inventaram a ladainha (fake) da “taxação do Sol”. Ganharam um forte aliado, o Presidente República. A ANEEL foi emparedada e, desde então, a arrumação foi freada. E as distribuidoras, que questionam o subsídio, mas têm suas empresas de GD, aproveitam e tiram seu quinhão.
A Câmara dos Deputados, com suas bancadas temáticas, aderiu à ladainha. Por lá foi esquentada uma proposta que prevê transição de 25 anos, que elevaria o valor dos subsídios para mais de R$ 100 bilhões até 2045. O TCU, do outro lado, também encurrala a ANEEL. Exige mudança imediata na norma de 2012. Quer proteger os demais consumidores da conta bilionária.
O certo é que, com a fotovoltaica a operar no teto da residência ou remotamente, a rede da distribuidora sempre será utilizada. Há ótimos benefícios na GD, que reduz perdas de energia e posterga investimentos, mas a ANEEL mostra que, mantida a lógica atual, os custos superam os benefícios.
A trilha ficou estreita para o Regulador. Mas a efetividade do capital privado virou lenda. O empurrão dos deputados, a um custo de R$ 50 bilhões, sugere que os investidores precisam de 25 anos para mostrar que são produtivos.
A solução não virá da guerra entre a “taxação do Sol” e “taxação dos pobres”. Ora, se o custo de investir na fonte solar decresceu 70% em 12 anos, a transição, de no máximo 10 anos, deve ser tal que considere a redução, no mínimo, desse custo ao longo tempo, o que implica subsídios decrescentes. Mas ninguém quer pensar assim.
Há outra discórdia bem atual, também com a intervenção do TCU, que questiona o valor da conta do risco hidrológico. Ressabiada, a Corte de Contas não quer ser driblada como no caso da indenização das transmissoras.
Depois de três anos a hibernar, no fim de 2020 foi aprovada a Lei 14.052, que resolveria o imbróglio do risco hidrológico. Contudo, em lugar de seguir princípios da Física, a opção foi por aderir ao clientelismo.
Se duas hidrelétricas, uma grande e outra muito pequena, estão em um mesmo trecho de rio ou mesma cascata, a energia produzida é igualmente afetada pelo regime de chuvas. O risco hidrológico é o mesmo, tanto que participam de um isonômico mecanismo de rateio da energia. Não para o legislador. Se a pequena usina tem um registro precário, não é amparada pela Lei 14.052, que protegeu as usinas de maior porte, pela mera razão de possuírem uma outorga, isto é, um registro sofisticado. É como se o regime hidrológico fosse determinado pelo papel.
Ao acompanhar uma audiência pública sobre as regras do risco hidrológico, vi que a UHE Belo Monte também entrou nessa ciranda de desprezo à Física. A usina ficou pronta, mas não tem como escoar toda energia produzida, apesar de o planejador ter especificado que a transmissão teria capacidade infinita, uma heresia conceitual. O resultado é desastroso. Em 2018, 2019 e 2020, o montante de energia vertida, que não fora injetada na rede, corresponde a R$ 3 bilhões. A usina requer ressarcimento.
Mesmo que a ANEEL, que tem sólidas razões, não se convença dos argumentos da UHE, que parecem fortes, é esperado que, por meio de uma bancada temática ou uma MP, a conta da heresia logo chegue aos consumidores.
Coisas positivas aconteceram nos últimos 90 dias, como a MP da privatização da Eletrobrás. Mas lá é também encontrado um caso preciso das leis elétricas do clientelismo. Será obrigação da nova empresa o suprimento de 78,4 MW médios, por 20 anos, para a transposição do rio São Francisco, a um preço de R$ 80/MWh. No mercado livre essa energia custaria R$ 150/MWh.
É o tipo do subsídio ineficaz e caro. Mais de R$ 3 bilhões. Incentivará a ineficiência no uso dos motores elétricos necessários à transposição. Uma planta de energia solar de 250 MW custaria menos de R$ 1,5 bilhão e permitiria a venda dos excedentes. Seria muito mais racional. Na modalidade de autoprodução, a energia solar custaria R$ 90/MWh, sem subsídios. Mas a lei elétrica do clientelismo precisa fazer sua parte.
Edvaldo Santana
(*) Doutor em Engenharia de Produção e Ex-Diretor da ANEEL
Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 22/04/2021