Roberto Pereira D´Araujo (*)
Quem quiser cotejar sua fatura de energia com a de outros países, não deve usar o câmbio, pois se o dólar se eleva, sua conta continua cara. O certo é verificar o valor do kWh em relação a outros produtos e serviços. A Agência Internacional de Energia, usando o método de paridade do poder de compra, mostra-nos que já em 2018 o Brasil era o vice-campeão de carestia do kWh. Para um país de dimensões continentais, líder de recursos hídricos, com vento e sol à vontade, é uma desonra planetária.
Desde 1995, o Brasil, seguindo a voga mundial, adotou o conceito de que o kWh seria uma mercadoria. Há algum sentido em mercados de base térmica, onde quem vende o kWh realmente os gera. Para o nosso, de grande predominância hidroelétrica e contando com reservatórios que “estocam” energia equivalente a vários meses de consumo, criar um modelo matemático que nos assemelha a esses mercados foi uma aventura arriscada. O resultado é o exposto nos gráficos abaixo.
Por sermos o país com maior latitude da Terra, contamos com climas e hidrologias distintas, valendo a pena transmitir muitos MWh por amplas distâncias. Portanto, o estoque é compartilhado com todas as regiões. Logo, como adotar a competição quando a geração efetiva das usinas obedece a um controle de estoque central, e não a sinais de oferta e demanda?
A saída foi adotar um complexo modelo que, através de simulações da operação, atribui uma “importância média” de cada usina ao total do sistema, o que resultou em um valor (Garantia Física) que significa o limite de venda de cada uma delas. Portanto, aqui, as usinas vendem uma energia atribuída que pode ser muito diferente da gerada. O caso mais óbvio é o das térmicas, que podem não gerar e, mesmo assim, vender energia.
Antes, a Eletrobras coordenava a operação, o planejamento e a comercialização. Agora o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) são os órgãos responsáveis. Aqui já há uma elevação de custos, pois três administrações custam mais do que uma.
Muitos encargos foram criados. Cito como exemplo a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), usada para subsídios, a Energia de Reserva (ERR), que reparava superavaliações de garantia do sistema, as bandeiras para cobrir custos não previstos, o GSF, risco das hidráulicas ao não conseguirem gerar a parcela atribuída pelo modelo.
Mas a razão estrutural do aumento está baseada em três realidades: 1 – Fontes de geração mais caras; 2 – Subsídios sociais e estratégicos; 3 – Nem todos pagam os mesmos custos.
As falhas do modelo causaram um enorme aumento de geração térmica. De 1995 até 2020, multiplicamos por seis a capacidade térmica. Esses aumentos súbitos ocorreram principalmente em duas situações:
1 – Na privatização da Eletrobras na década de 1990 – quando o governo não conseguiu desestatizar totalmente a companhia como pretendia, mas se desfez das usinas da Eletrosul –, o capital se retraiu esperando a venda de ativos, e a empresa cortou os investimentos. Na realidade, a hidrologia de 2001 não foi o único agente do racionamento. Desse “imprevisto” surgiu o Programa Prioritário de Termeletricidade (PPT), que contratou cerca de 10GW.
2 – O consumo depois do racionamento caiu 15%. Essa sobra e mais anos de hidrologia úmidas geraram uma festa de preços baixos no “mercado livre”. A Eletrobras perdeu contratos em 2003 e, impedida de negociar, gerava e recebia valores próximos ao custo de operação muito baixos (Preço de Liquidação das Diferenças – PLD). Essa conduta gerou no mercado um desprezo por contratos de expansão da oferta. Por dez anos essa distorção persistiu. Não é coincidência que a Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) anuncia que “economizou” R$ 220 bilhões para seus clientes (confira comparativo de preços no gráfico acima).
Em 2008, sob um plano meramente indicativo, um leilão acabou contratando cerca de 10GW adicionais de térmicas caras para compensar esse hiato, pois o mercado livre já ocupava 27% do consumo (veja a evolução da “termificação” no gráfico abaixo).
Ora, se parte da oferta registrada não é utilizada pelo operador por ser cara, quem gera no lugar são as hidráulicas. Assim, o trajeto de redução da reserva aponta para mais custos futuros. Logo, a crise hídrica não é a única culpada pela ameaça de racionamento por que estamos passando.
As grandes hidráulicas recém-construída, só viabilizadas com parceria com a Eletrobras, mostram que o setor privado não tem “apetite” para enfrentar esse desafio, apesar do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Nas fontes renováveis, principalmente solar e eólica, que podem ajudar a preservar a reserva, o Brasil está muito atrasado e criando conflitos. A tentativa de redução tarifária via amortização de usinas antigas foi feita sem diagnóstico, numa dose excessiva e com o demérito de fragilizar a Eletrobras. A política adotada ainda impõe mais térmicas.
Enfim, as expectativas apontam para um cenário muito difícil, apesar das perenes cicatrizes deixadas. No núcleo da solução está o alto nível de desinformação dos cidadãos. Esse é o desafio.
(*) Roberto Pereira D´Araujo é engenheiro eletricista, diretor do Instituto de Desenvolvimento do Setor Energético (Ilumina) e ex-membro do Conselho de Administração de Furnas (2003-2005)