Energia solar protagonizará uma das maiores mudanças no setor elétrico pós-covid-19, diz Frederico Boschin

Uma forte tendência no aumento permanente do distanciamento entre as pessoas e uma ampliação do trabalho remoto, o que pode aumentar o consumo doméstico e também beneficiar a geração de energia solar. Vindo em seguida a expansão da geração distribuída, justamente por conta disso, poderão ser alguns dos efeitos do covid-19 sobre o setor elétrico, afirma Frederico Boschin, advogado especialista em  energia, em entrevista a MODAL.

“Existe uma predominância tecnológica  da energia solar sobre as outras fontes e, numa fase pós-vírus, podemos, sim, ter um cenário de maneira mais favorável, na medida em que esse isolamento e essa condição de confinamento das pessoas possa indicar que se trata de uma das melhores opções para geração de energia pela descentralização de pessoas e inclusive da própria geração de energia em zonas rurais. Isso traz autossuficiência na geração e  pode, inclusive, trazer uma economia de energia”, afirma.

Ao analisar de maneira específica o segmento do mercado livre diante da queda de preço devido à redução de demanda de energia, ele alerta ao consumidor que deseja a interpretação de seu contrato de energia, no âmbito dos institutos, nos quais o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. “Nesse caso, a empresa deve comprovar, de forma robusta, que não pode contornar a situação por meio da venda do excedente de energia, demonstrando que a diferença de preço tornará sua atividade insustentável”, diz Boschin.

Como você percebe o setor elétrico nacional pós-covid-19?

O impacto direto do covid-19, num primeiro momento, vai ocasionar a redução da demanda de energia. Há uma estimativa de queda em torno de 15% do montante total consumido. Alguns setores sofrerão um impacto mais severo, como são os casos do comércio e da indústria. Como o setor elétrico é demandado de acordo com atividade econômica, existindo uma relação direta entre atividade econômica e demanda por energia, e na medida em que não se armazena energia, será preciso reduzir a geração.  Até o momento não é possível dimensionar de que forma isso vai se reverter lá na frente (quando passar a pandemia), nem quem deverá pagar a conta. Mas, em princípio, a retomada da economia reativa novamente a geração de energia. Num primeiro momento, os contratos de longo prazo não tendem a ser afetados. Vamos ter primeiro um PLD mais baixo, que já ocorre nas últimas semanas operativas, justamente porque não há tanta demanda por energia.

No caso dos projetos em geração ainda em fase de obras, quais os riscos que a paralisação das atividades deve acarretar?

Esse momento de pandemia não afeta somente o setor de geração de energia, mas todo o setor o de construção civil. Muito porque alguns dos canteiros de obras estão sob uma legislação municipal ou estadual de restrição de circulação. Então, eventualmente, devem ser paralisadas as atividades de obras sob pena até de interdição por conta do Ministério Público, ou alguma lei que imponha a quarentena, o confinamento.  Com o atraso desses projetos, vamos ter um atraso na entrada em operação de uma série de empreendimentos de geração. Na medida em que há uma redução de demanda de energia, isso não aparenta ser, de imediato, um problema grave, uma vez que somente iremos retomar a curva de carga lá na frente. Pontualmente, pode ocorrer algum descompasso, mas, novamente, não me parece um problema grave. Do ponto de vista do empreendedor é preciso ter em mente que todo o projeto de obra implica um DRO (Despacho de Requerimento de Outorga) que inclui uma série de responsabilidades com base no cronograma de implantação da obra. O que isso quer dizer? Perante o agente regulador quem opera hoje obras de geração precisa informar que existe alguma espécie de impeditivo legal e pedir a suspensão das obras e/ou postergar o cronograma de implantação. Isso é um procedimento necessário e no presente momento, essencial, para a regular definição do cronograma de obras.

O setor de energia solar continuará em expansão? Será esta a fonte mais favorecida pós-vírus?

A energia solar é uma tendência mundial e venho repetindo isso há bastante tempo. Existe uma predominância tecnológica sobre as outras fontes, na medida em que ela consegue gerar energia de forma mais econômica, além de outras vantagens (vantagens locacionais e de escalabilidade dos empreendimentos).  Pelo fato dela ser muito aplicada em geração distribuída, ela favorece os perfis de consumo de quem está em casa durante a quarentena. Por ser uma obra menor, a energia solar também não sofre tanto em comparação a outras fontes nesse momento. Numa fase pós-vírus podemos sim ter um cenário de maneira mais favorável, na medida em que esse isolamento e essa condição de confinamento das pessoas possa indicar que se trata de uma das melhores opções para geração de energia pela descentralização de pessoas e inclusive da própria geração de energia em zonas rurais. Isso traz autossuficiência na geração (segurança no suprimento) e pode inclusive trazer uma economia de energia.

No caso do setor eólico e hídrico, quais as suas projeções?

O setor de geração centralizada irá enfrentar muitos problemas num futuro próximo, justamente porque o primeiro impacto do coronavírus foi o adiamento dos leilões do mercado regulado. Ou seja, o governo entendeu que não existe demanda para que se façam novas contratações de energia por longo prazo no mercado regulado. Isso não quer dizer que esses projetos sejam cancelados. Pode ser que tenhamos num primeiro momento apenas um adiamento e mais na frente a retomada dos leilões, justamente porque essa energia vai ser necessária. Ela faz parte do planejamento energético e vai ter de ser feita, construída, implementada e despachada. O que pode acontecer é que se crie um hiato no setor enquanto perdurar a pandemia. Então, é preciso entender que esses projetos deverão sofrer alguns atrasos. Seja no desenvolvimento, seja na construção.

Quais os efeitos que se pode projetar diante da crise das distribuidoras em razão da queda do consumo?

O socorro já foi dado pelo governo na MP 950 para a eventual inadimplência que ainda tende a se agravar enquanto perdurar a pandemia. Existe, portanto, um descasamento no fluxo de caixa das distribuidoras. Consumidores afetados economicamente pela pandemia deixam de pagar e o governo não autorizou o corte da energia. Energia gerada e distribuída precisa ser paga, então as distribuidoras conseguiram ajuda emergencial para, pelo menos,  cobrir a inadimplência de consumidores beneficiados pela Tarifa Social. Obviamente, as distribuidoras têm condições de absorver uma parte desse prejuízo, a outra parte vai ser rateada entre toda a cadeia, e que inclui consumidores do mercado cativo e do mercado livre através do aumento da cota da CDE, em que o governo aloca as rubricas de cobertura de eventuais desacertos do setor.  Caso não aconteça isso, vamos ter o contribuinte pagando na forma de recolhimento de imposto, porque, ao fim e ao cabo, quem vai fazer a cobertura do CDE será o Tesouro Nacional por meio de aporte de dinheiro. Ou é o consumidor na forma de alguma espécie de rubrica da CDE, ou o contribuinte de imposto que terá de pagar para a União algum tributo geral a ser despachado para dentro disso.

Como vê o caso específico do mercado livre diante dos preços em queda? Poderá haver judicialização dos contratos?

A judicialização sempre é uma possibilidade sobre qualquer negócio em que haja desacerto; no caso da energia não é diferente. Os primeiros efeitos, como já dito, ocorrerão basicamente na redução de demanda, o que precisará ser rediscutido em alguns contratos. O que quero dizer com isso? Quando operamos no mercado livre, existe sempre a contratação de energia pelo período definido em contrato (geralmente longos). O período do contrata define muitas coisas, inclusive o próprio preço de energia e uma condição preferencial de compra, mas, implica, necessariamente, a responsabilidade do consumidor de contratar a energia. Isso funciona igualmente no mercado do gás, por exemplo. São as chamados condições take or pay – ou seja, a energia já  se encontra destinada ao consumidor e este fica então encarregado de consumi-la  -e pagar por isso. Em alguns casos, muitos dos contratos já preveem uma espécie de oscilação no consumo, o que chamamos de flexibilidade. Os contratos com cláusula de flexibilidade tem uma distribuição da energia de forma flexível por meio dos meses. Dependendo de alguns meses, existe um percentual definido de energia que eventualmente posso não consumir e não pagar. Alguns contratos pode ser zero, sem flexibilidade, mas na grande maioria dos contratos existem cláusulas permitem até 20% de flexibilidade.  Num primeiro momento, isso diminui o custo e resolve -ou amortece – uma parte do problema. Caso perdure demais a quarentena e a redução do consumo não seja suficiente, será preciso entrar num segundo momento com a comercializadora, que é a renegociação do contrato. Neste caso, onde a flexibilidade não amorteceu o volume, algumas comercializadoras abrem balcões de negociação em que recebem a energia de volta em percentuais maiores que a flexibilização e tentam distribuir esse volume não consumido pelas flexibilizações de outros meses, ou seja, o que pode incluir também renegociação de valores de energia, prazos de contrato e alguma outra condição de negociação que faça com que se tenha uma acomodação dos dois interesses – a comercializadora que precisa amortecer esse prejuízo e o consumidor que também precisa pelo fato de não consumir energia.
E quando ocorre a judicialização?

A terceira possibilidade é a judicialização, caso não se tenha uma conversa adequada na renegociação dos contratos. Muito se tem falado no mercado sobre força maior e caso fortuito. Assim, superadas as etapas anteriores, o consumidor que desejar a interpretação do seu contrato de energia, no contexto da força maior ou caso fortuito, deve atentar para alguns pontos: (i) Independente de dispositivo expresso contratualmente, ambos encontram previsão genérica no art. 393, do Código Civil, aplicável a toda e qualquer tipo de atividade empresarial que, por motivos alheios à sua vontade, ocasionado por força maior, fica impossibilitada de cumprir obrigação legal, contratual ou regulatória; (ii) não devem ser invocados por aqueles que já estavam inadimplidos, ou prestes a inadimplir antes da ocorrência do evento, prevalecendo sempre o princípio da boa-fé; e (iii) a empresa prejudicada deve, necessariamente, demonstrar o nexo de causalidade entre a crise gerada pelo Covid-19, seus respectivos efeitos, com a impossibilidade de cumprimento da obrigação de compra e venda de energia elétrica, por meio de notificação prévia e expressa, trazendo conteúdo probatório factível e robusto nos termos do procedimento que porventura tenha sido definido contratualmente. Assim, a empresa deve comprovar que não pode contornar a situação através da venda do excedente de energia, demonstrando que a diferença de preço tornará sua atividade insustentável.

Resumo da ópera. Vamos ter seguramente algumas mudanças radicais …

A pandemia traz a mudança de alguns paradigmas que pode se estender para os próximos anos, principalmente pelas mudanças do tecido social. A questão do confinamento/distanciamento social das pessoas e da não aglomeração pode trazer, na essência da discussão, uma ampliação dos trabalhos de home office. Na minha visão, haverá uma forte tendência no aumento permanente desse distanciamento e uma ampliação do trabalho remoto, o que pode aumentar o consumo doméstico e também beneficiar a geração de energia solar. Num segundo momento, podemos ter um aumento da geração distribuída justamente por conta disso, essa descentralização das pessoas pode sim incentivar com que tenhamos uma descentralização das atividades e a desnecessidade de amplas estruturas de escritórios.  Pode ser uma consequência permanente da pandemia. Já o setor energia sofre com uma demanda sazonal, mas sempre retorna aos mesmos patamares de antes, justamente porque é a parte da econometria que diz muito sobre a saúde financeira e econômica de um país ou de uma empresa. Existe uma correlação direta entre uma coisa e outra. A queda do consumo de energia não é uma tendência porque o histórico de consumo sempre foi de aumento. É apenas por um período circunstancial que teremos uma redução do consumo. Então, a minha visão é de que tão logo tenhamos uma retomada das atividades, a tendência de curva de crescimento de carga voltará a se normalizar como a própria atividade econômica que também irá voltar.

Por Milton Wells

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