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Gaia e a catástrofe gaúcha

 

Luiz Afonso dos Santos Senna (*)

 

Em palestra proferida no Supremo Tribunal Federal, Joseph E. Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2001, aponta que o tipo de capitalismo com o qual convivemos nos últimos 40 anos conduziu a uma sociedade que está muito distante do que se espera, e sugeriu como saída o que chama de capitalismo progressivo, em que a economia deve servir à sociedade, e não o contrário.

Lembrou também que mais da metade do mundo não vive em democracias e que o regime democrático tem sido desafiado e questionado. Para Stiglitz, a desigualdade tem crescido cada vez mais em uma economia que não é sustentável. Destacou ainda a necessidade de haver equilíbrio de liberdades, uma vez que não podemos pensar em liberdades de forma isolada em uma sociedade organizada.

Em relação ao Brasil, lembrou que é uma das sociedades mais desiguais do mundo, com uma infraestrutura insuficiente e com um mercado financeiro que precisa de reformas para reverter taxas de juros que estão entre as mais altas do mundo. Stiglitz reafirmou ainda a importância e força do Brasil para a economia global por conta da Amazônia e o protagonismo que pode e deve ter na questão ambiental.

 

A partir da palestra de Stiglitz, me veio à mente também os recentes desastres ambientais em meu estado natal, o Rio Grande do Sul, e lembrei-me de Gaia, a quem fui apresentado por meu amigo Luis Fernando de Abreu Cybis, no final da década de 1980. Na mitologia grega, Gaia é a Deusa da Terra, Mãe geradora de todos os deuses e criadora do planeta. Nascida do Caos foi a ordenadora do Cosmos, acabando assim com a desordem e a destruição em que aquele se encontrava, criando a harmonia. Sozinha, gerou Urano (o Céu) e Pontos (o Mar); criou, do seu próprio corpo, montanhas, vales e planícies; fez nascer a água e deu origem aos seres vivos.

 

James Lovelock, que morreu em 2022 aos 103 anos, desenvolveu a Hipótese de Gaia, que posteriormente se transformou em Teoria de Gaia. Para Lovelock, a vida na Terra é uma comunidade autorregulada de organismos que interagem entre si e com o meio ambiente. Em 2020, declarou que a biosfera está reduzida ao último 1% de sua vitalidade.

James Lovelock, aos 99 anos

Lovelock ajudou a moldar muitos dos eventos científicos mais importantes do século XX, sendo uma voz eloquente e firme em relação à crescente necessidade de conscientização sobre os riscos climáticos representados pelos combustíveis fósseis, o debate sobre as substâncias químicas prejudiciais ao ozônio na estratosfera e os perigos da poluição industrial. Foi um dos primeiros cientistas a alertar sobre o meio ambiente, sendo que nos últimos anos se tornou pessimista quanto à possibilidade de evitar alguns dos piores impactos da crise climática. A teoria de Gaia lançou as bases da ciência do sistema terrestre e uma nova compreensão da interação entre vida, nuvens, rochas e atmosfera.

 

Segundo a Teoria de Gaia, a parte viva da é um invólucro esférico fino de matéria que cerca o interior incandescente da Terra. Inclui a biosfera e é um sistema fisiológico dinâmico que vem mantendo nosso planeta apto para a vida há mais de três bilhões de anos. Gaia possui características de um sistema fisiológico, uma vez que parece dotada de um objetivo inconsciente de regular o clima e a química em um estado confortável para a sustentação da vida.

Observando-se o ecossistema como um todo, segundo uma visão holística, verifica-se que o aumento da população humana, a degradação do solo, o esgotamento dos recursos, o acúmulo de resíduos, todo tipo de poluição, o consumo inveterado de combustíveis fósseis, a mudança climática, os abusos da tecnologia e a destruição da biodiversidade em todas as suas formas constituem juntos uma inédita ameaça ao bem-estar humano, até então desconhecida pelas gerações anteriores.

 

A Teoria da Gaia evidencia que o problema de equilibrar o meio ambiente é real e que a inação pode tornar essa situação de desequilíbrio irreversível, levando o planeta à morte. Gaia é um invólucro esférico fino de matéria que cerca o interior incandescente.

Começa onde as rochas crustais encontram o magma do interior quente da Terra, a cerca de 160 quilômetros abaixo da superfície, e avança outros 160 quilômetros para fora através do oceano e do ar até a ainda mais quente termosfera, na fronteira com o espaço. Inclui a biosfera e é um sistema fisiológico dinâmico que vem mantendo a Terra apta para a vida há mais de 3 bilhões de anos. O Sol era provavelmente 25% menos luminoso do que hoje.

O surgimento de oxigênio foi um evento extremamente importante na história de Gaia, uma vez que impeliu o desenvolvimento de células vivas muito complexas, e permitiu que a Terra conservasse seus oceanos, agindo como uma barreira contra a perda de hidrogênio para o espaço. Sabe-se que daqui a cerca de 1 bilhão de anos, e muito antes do fim da vida solar, o calor recebido pela Terra será superior a 2 quilowatts por metro quadrado, mais do que Gaia que conhecemos consegue suportar, levando a sua morte por superaquecimento.

 

Gaia regula sua temperatura perto do ideal para qualquer tipo de vida que a esteja habitando. Mas, como muitos sistemas reguladores com uma meta, ela tende a ultrapassar o alvo do lado oposto ao seu forçamento. A terra não pega fogo, mas se torna quente o bastante para derreter a maioria do gelo da Groenlândia e parte do gelo da Antártida ocidental. Neste caso, será acrescentado aos oceanos do mundo água suficiente para elevar os níveis do mar em cerca de 14 metros. Lovelock se entristece, assim como todos nós, ao pensar que quase todos os grandes centros urbanos atuais estão abaixo do que, em um mero piscar de olhos do tempo geológico, poderia ser a superfície do oceano.

 

Tudo indica que Gaia está ficando muito zangada, e se não tomarmos jeito, ela nos expulsará. Não há razão para achar que o que estamos fazendo destruirá Gaia, mas se continuarmos deixando as coisas como estão nossa espécie poderá nunca mais desfrutar o mundo viçoso, belo e verdejante que tínhamos faz apenas cem anos.

Quem corre mais risco é a civilização; os seres humanos são resistentes o suficiente para que casais procriadores sobrevivam, porém Gaia é ainda mais forte e resistente. O que estamos fazendo a enfraquece, mas dificilmente a destruirá. Ela sobreviveu a catástrofes enormes em seus 3 bilhões de anos ou mais de vida.

 

Eventos climáticos extremos, como a inundação no Rio Grande do Sul, nos fazem lembrar que tudo indica que resta pouco tempo para evitarmos as mudanças desastrosas previstas por Gaia.

 

Torna-se cada vez mais urgente a necessidade de um esforço constante para equilibrar e integrar os três pilares do bem-estar social, prosperidade econômica e proteção ambiental em benefício das gerações atual e futura.

 

Lovelock lembra que a Terra de fato se regula.  Porém, devido ao tempo decorrido para coletar os dados, descobrimos tarde demais que a regulação estava falha e o sistema da Terra rapidamente se aproximava do estado crítico em que toda a sua vida corre perigo. Daí ser tarde demais para o desenvolvimento sustentável; precisamos é de uma retirada sustentável. Gaia é real na medida em que temos uma terra autorreguladora, mas com um reconhecimento crescente de que muitos fenômenos naturais são incompreensíveis e não podem ser explicados em termos reducionistas clássicos – fenômenos como a consciência, a vida, a emergência da automanutenção do equilíbrio.

 

A raiz de nossos problemas com o meio ambiente está na falta de uma limitação ao crescimento da população. 8 bilhões de pessoas é um número insustentável no estado atual de Gaia. Se conseguirmos superar a ameaça autogerada de mudança climática mortal, provocada por nossa destruição maciça de ecossistemas e poluição global, nossa próxima tarefa será assegurar que nossos números sejam sempre condizentes com nossa capacidade, e de Gaia, de alimentá-los. Equilíbrio é a palavra-chave.

 

A primeira preocupação fundamental é a limpeza das águas, a proteção do solo e o cuidado com as árvores. Dentre todos os recursos, de energia elétrica, biocombustivel, energia eólica, fontes renováveis, combustíveis fósseis, carvão, petróleo e a energia nuclear, para Lovelock, esta última é a solução e o remédio que sustenta uma fonte constante e segura de eletricidade, para manter acesas as lâmpadas da civilização até que estejam disponíveis a fusão limpa e perene – a energia que alimenta o Sol – e a energia renovável.

 

A maior ironia, segundo Lovelock, é que no mundo desenvolvido estão os principais poluidores, as pessoas mais destrutivas do planeta, e embora disponham do dinheiro e dos meios para impedir a Terra de transpor o limite mortal que tornará a mudança global irreversível, são paralisados pelo medo. O desenvolvimento desorganizado sobre a terra se deu de forma inconsequente, sem prever nem temer suas consequências. As grandes catástrofes que estão ocorrendo no mundo são alertas para que se tenha a dimensão do perigo real e presente, de modo que haja uma grande mobilização, um recuo, e se promova uma retirada ordeira e sustentável para um mundo onde tentemos viver em harmonia com Gaia.

 

É hora de reflexões profundas. Por muitas décadas as discussões sobre o desenvolvimento foram centradas na procura de alternativas sobre como crescer para atingir o ápice da produção. Esta busca desenfreada pelo progresso levou à desigualdade social e à degradação ambiental. O desenvolvimento sustentável parece ser um caminho, diante da urgência de se estabelecer um novo modelo.

 

Temos a oportunidade de pensar em um desenvolvimento com base sustentável, levando em conta simultaneamente as dimensões econômicas, políticas, sociais, com qualidade de vida, inclusivas e ambientais.

 

Já ateamos fogo e talvez agora seja esta nossa última chance de salvar a nave espacial que habitamos. Precisamos aprender que somos dispensáveis.

 

Bibliografia Consultada

Lovelock, James (1987). A New Look at Life on Earth. Oxford University Press.

Márcia Cristina Gomes Molina (2019). Desenvolvimento sustentável: do conceito de desenvolvimento aos indicadores de sustentabilidade. Revista Metropolitana de Governança Corporativa, São Paulo, Vol. 4, N. 1, p. 75-93, Jan./Jun. 2019.

Valadão, Aline de Fatima Chiaradia; Panhoca, Luiz; Moraes, Marcela Barbosa de; Magalhães, Maurilio Gomes de; e Paula, Roberta Manfron de (2008). Teoria de Gaia e a preservação do meio-ambiente. Gestão e Conhecimento, v. 4, n. 2, março/junho 2008.

(*) PhD em transportes. Professor da UFRGS. Foi Diretor da ANTT, da AGERGS e Secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre.

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