Luiz Afonso dos Santos Senna
Corrija-me se estiver errado, mas a fina linha entre a sanidade e a loucura não tem ficado mais fina? (George Price)
No Brasil, a mobilidade urbana como um todo, e o transporte público coletivo em particular, têm sido conduzido de forma amadora e desprovido de planejamento.
Os chamados “aplicativos” entraram sem pedir licença em um mercado regulado e atuam sem regulação, caracterizando um paradoxo per si. Nos países de primeira linha, a chegada dos aplicativos não gerou impactos relevantes nos serviços existentes por uma simples razão: foram definidos regramentos mínimos que ajustaram o novo serviço a um planejamento pré-existente. Por exemplo, onde há organização, os serviços de transporte de passageiros somente podem ser prestados por motoristas que possuam habilitação profissional. Transporte e infraestrutura como um todo, são indústrias de rede e esta é a principal razão pela qual precisam ser planejados.
O amadorismo na gestão de transportes e mobilidade urbana nas cidades brasileiras fica evidente quando propostas que surgem para o setor de forma aleatória ou movidas por dogmas e posturas ideológicas acabam sendo implementadas sem que haja uma base conceitual robusta. Copia-se, pura e simplesmente, iniciativas de outros países sem fazer a necessária crítica e estudar os possíveis impactos de sua implementação.
Tarifa zero
Neste sentido, recentemente voltou a ser proposta a ideia da chamada “Tarifa Zero”. Trata-se de uma política de transporte público que isenta os usuários de pagamento pelo serviço de transporte prestado. O Movimento Passe Livre, de 2013, contra o aumento das passagens do transporte coletivo teve uma dimensão nacional. Anthony Ling[1] lembra que, em entrevista ao Programa Roda Viva à época, o MPL citou Hasselt, na Bélgica, como um exemplo de sucesso a ser seguido. Pouco tempo após a entrevista, foi extinto o modelo na cidade, voltando a ser cobrado pelo uso do transporte coletivo, pela insustentabilidade financeira da inciativa.
Muitas cidades têm também adotado subsídios, complementando o que seria a capacidade de pagamento com recursos públicos para cobrir o gap entre receitas e custos de prover os serviços. A argumentação utilizada para justificar subsídios parciais e a Tarifa Zero estaria vinculada a um aumento da mobilidade da população, notadamente da parcela com menor poder aquisitivo. O argumento inclui a grande participação dos custos de transporte na renda dos usuários, que tem sua mobilidade restringida, incluindo a dificuldade de acesso ao trabalho e melhores empregos. Entre os argumentos também é mencionado que o custeio público permitiria o controle direto da remuneração das empresas, ampliando a transparência e facilitando a exigência de critérios de qualidade. Alguns mencionam ainda potenciais benefícios ambientais de se incentivar o transporte coletivo em detrimento do uso do automóvel.
Os recursos propostos para custear o subsídio incluem propagandas nos ônibus, IPTU progressivo, taxação a aplicativos de transporte, taxa de congestionamento (pedágio urbano), recursos da área azul de estacionamentos em vias públicas, a municipalização da Cide (imposto federal sobre combustíveis)[2], ou a pura e simples utilização do orçamento público, mesmo que este seja insuficiente para cobrir as várias demandas municipais, entre elas saúde, educação, segurança.
Subsídios
A implantação de subsídios de tal monta, no caso da Tarifa Zero, requerem recursos significativos, normalmente muito maiores do que a capacidade dos orçamentos municipais. Os casos internacionais em que esta política foi aplicada, normalmente são de cidades de pequeno porte com rendas muito altas, normalmente consequência de grandes empresas localizada no município.
Um aspecto importante a ser considerado nesta discussão é a dos custos de produção dos serviços. De uma forma geral, no Brasil são ainda utilizadas as famigeradas Planilhas do Geipot, que parte de uma lógica de custos médios (a média da média, da média…) para definição do preço. Como não são geralmente observadas condições de eficiência na gestão e operação, acabam sendo repassados custos ineficientes. Em verdade, muitas vezes, há um incentivo à ineficiência. A adoção de subsídios em grande escala é um fator que tende a aumentar esta situação de custos ineficientes.
Muitas vezes, em nome de buscar mecanismos para beneficiar a parcela mens privilegiada da sociedade, acaba-se fazendo exatamente o oposto. A implantação da Tarifa Zero impacta indiscriminadamente a todos os usuários e não apenas a população alvo da política social.
Uma das possíveis razões para o sucesso do transporte público coletivo nos países que se tem como benchmark (normalmente os países europeus) reside exatamente na diversidade de usuários dos sistemas, incluindo baixa, média e até alta renda, dada a conveniência da oferta.
Os usuários de automóveis são menos sensíveis ao fator preço (baixa elasticidade-preço). Portanto, a Tarifa Zero possui efeito inexpressivo para atrair motoristas para o transporte público. Anthony Ling (2022) destaca que na experiência internacional com a Tarifa Zero, o ônibus captura principalmente os deslocamentos que seriam realizados a pé ou de bicicleta, reduzindo parte dos ganhos ambientais que justificariam sua execução.
Em casos como no município de Porto Alegre, nos dias denominados de passe livre (algumas datas específicas ao longo do ano) a não cobrança de tarifa afugenta substantiva parte dos usuários do sistema que alegam falta de segurança, horários insuficientes e inadequados, entre outros.
Em relação a um possível maior controle de custos e fiscalização das empresas no caso da adoção da Tarifa Zero, não existe comprovação prática.
Os preços existem exatamente para estabelecer uma situação de equilíbrio entre oferta e demanda por serviços, servindo de incentivo para as melhores práticas de negócio. Nos serviços públicos a denominação é tarifa, uma vez que é fixada pelo poder público. Sem a existência de uma tarifa não é possível praticar uma regulação entre oferta e demanda dos passageiros entre horários de pico e fora de pico.
A eficiência sistêmica de um país, assim como a sustentabilidade financeira, são fundamentais em todas as atividades. Costuma-se argumentar que mobilidade urbana e transportes são diferentes das demais atividades, porém não são. Seguem os mesmos princípios econômicos. São monopólios ou oligopólios, e para isto existe, de longa data, uma ampla e profunda literatura a respeito. O estado da arte está disponível. O problema é que o estado da prática está muito aquém do nível de conhecimento existente, refletindo o baixo nível técnico nas tomadas de decisão. Aliás, impossível avaliar o nível de desenvolvimento de uma país, estado ou município, pelo gap entre o estado da arte (conhecimento) e o estado da prática ( o que e feito).
O grande equívoco
Observe-se que, muito do que ocorre em termos de deslocamentos nas cidades brasileiras é fruto da completa desconexão entre locais de trabalho e de moradia, fruto da falta de integração entre o uso de solo e transportes. O poder público deve pensar de forma conjunta o sistema de transportes e o planejamento do uso e ocupação do solo, uma vez que a distribuição do uso do solo afeta a demanda de viagens, e os investimentos no sistema de transportes influenciam as decisões de uso do solo. Daí a necessidade de serem estabelecidas diretrizes conjuntas de planejamento urbano, habitacional, localização industrial e negócios, meio-ambiente e de transportes, para direcionar o desenvolvimento urbano integrado. Aliás, esta é a receita das cidades consideradas benchmarks em mobilidade urbana.
Em princípio, para os menos informados, toda e qualquer isenção parece simpática, dando a impressão de que está corrigindo distorções e recompensando um determinado segmento injustiçado. Porém, o grande equívoco desse raciocínio e a grande injustiça que o mesmo traz, é que a solução aparentemente simples de transferir a conta do usuário para o contribuinte (via subsídios pagos pelo orçamento público ou novos impostos) não é economicamente sustentável.
Nas soluções tradicionais, parte-se do princípio de que os custos correspondem aos gastos para manter o sistema no nível em que se encontra; se a preocupação maior é reduzir a tarifa, podem ser consideradas três possibilidades: aumentar o número de passageiros pagantes, diminuir o número de não pagantes, ou reduzir a qualidade do serviço. A Tarifa Zero vai ao sentido contrário.
Caso venha a ser adotada, o pragmatismo econômico mostra que haverá duas datas marcantes: a do início, da entrada em vigor da medida, saudada por boa parte da classe política e outros segmentos ideológicos, e a data de encerramento da desastrada iniciativa, com déficits monstruosos, negação de responsabilidade por parte de quem aplicou as medidas e pedidos de socorro para recuperar as finanças públicas municipais.
A questão fundamental no Brasil atual é a espera de serviços de primeiro mundo com preços de terceiro mundo. Algo como querermos jantar em um restaurante sofisticado de padrão internacional pagando o preço de um restaurante prato feito (aliás, restaurante de graça).
O mais urgente nesse momento é que se busque o equilíbrio, se elimine qualquer instinto populista inconsequente e, fundamentalmente, se busque a justiça social em seu sentido mais amplo. Definitivamente, transferir pura e simplesmente o custo do transporte dos usuários para os contribuintes que pagam impostos não é justo nem tampouco inteligente.
O país não pode mais viver sob a égide de políticas de improviso, populistas, eleitoreiras e economicamente inconsequentes. É uma imensa injustiça iludir a população com soluções que na verdade são miragens.
[1] Anthony Ling (2022). A Tarifa Zero não vale a pena. https://caosplanejado.com/a-tarifa-zero-nao-vale-a-pena/
[2] O então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad fez proposta neste sentido, em 2013.