Potência ou energia? Um falso dilema

 

Edvaldo Santana (*)

 

O setor elétrico não consegue viver longe de polêmicas, parte delas motivada pelo desconhecimento, por interesses políticos ou as duas coisas juntas. Este é o caso da mais recente, a comercialização da potência, que surgiu de interpretação dada pelo ministro Vital do Rêgo, do Tribunal de Contas da União (TCU), para o caso dos ativos de geração da Eletrobras.

Essas “interpretações”, em geral viesadas, são frutos de um grave problema de governança, no qual aspectos técnica e comercialmente complexos, com graves efeitos sobre as tarifas, são deliberados pelo Congresso Nacional, ou mesmo pelo TCU, uma espécie de regulador do regulador.

Há situações, no Brasil, em que a potência já é objeto de precificação? Sim. Itaipu é a mais conhecida. Por que, na UHE Itaipu, a tarifa é definida a partir do kW (potência) e não do kWh (energia)? A razão é, de certa maneira, simples. Como é um empreendimento binacional, o Paraguai, um dos sócios, não pode ficar submetido às regras de operação do Brasil, o outro sócio. Ex.: o Brasil exigiu a participação da usina no Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), instrumento que não faz parte do ordenamento jurídico do país vizinho.

Assim, a receita da usina, que resultou de um tratado internacional, essencial para viabilizar os investimentos, não pode ficar sujeita às regras de um dos lados. O preço, então, foi definido em US$/kW.mês. Ou seja, a receita anual de Itaipu é sempre a mesma, independentemente do volume de energia produzido. No caso extremo, mesmo que a usina, por decisão do Operador Nacional do Sistema (ONS), fique sem gerar, sua receita estaria garantida.

 

itaipu_binacional_md(1)

UHE Itaipu

Do exemplo de Itaipu, mas não só por ele, surge uma conclusão fundamental: o preço da eletricidade é especificado pela potência quando o ativo objeto da precificação, por alguma razão (técnica ou acordo bilateral), não tenha seu desempenho associado à produção.

Quais são os ativos, além dos binacionais, que atendem a esse princípio? São aqueles que podem ser classificados como reserva – de capacidade ou de potência. Uma característica das usinas contratadas como capacidade é que são vistas como um “seguro”, para suprir as necessidades de potência. É dessa tipificação (como se um seguro fosse) que deriva o termo mercado de reserva de capacidade ou mercado de confiabilidade.

É uma característica que tende a ficar mais relevante com o aumento da participação das fontes intermitentes na matriz elétrica e com a descentralização da geração, o que tem acontecido por meio da geração distribuída. Assim, a oferta tende a ficar cada vez menos despachável, o que torna mais importante o seguro ou a reserva de capacidade.

As mudanças climáticas, as quais têm reduzido muito as vazões no período recente, também podem exigir reserva, mas, ironicamente, por déficit de potência das hidrelétricas. No segundo semestre de 2021, em virtude da severa escassez de água, a produtividade das hidrelétricas foi afetada, dada a diminuição da altura das quedas, explicada pela redução da lâmina d’água dos reservatórios de cabeceira. Ficou quase impossível atender à demanda na hora da ponta sem as termelétricas muito caras.

As usinas candidatas à modalidade de reserva de capacidade são, em geral, aquelas que, em virtude dos seus elevados custos de curto prazo, podem operar por períodos muito pequenos, isto é, em situações muito excepcionais, como na hora da ponta de dias muito quentes. Esses seriam os casos das termelétricas a óleo combustível e a óleo diesel.

A propósito, em dezembro passado, a Aneel realizou um leilão (de reserva de capacidade) em que foram contratadas usinas que operarão, na média, cerca de 300 horas/ano. Algumas delas não passarão de 150 horas/ano.

As hidrelétricas da Eletrobras, com mais de 26.300 MW de potência instalada, podem ser consideradas como reserva? Não. Não podem. As hidrelétricas, mesmo com o aumento da participação das fontes intermitentes, serão sempre usinas de base, que operam, em média, 70% das horas do ano, como também o é a nuclear, a qual opera por 90% das horas do ano. Claro que as UHEs possuem função estratégica para permitir maior flexibilidade na operação do sistema – e deveriam ser beneficiadas por isso. Mas não significa que a precificação de seus ativos passaria a ser pela potência.

É certo que a EPE, em seus planos decenais, define qual será o custo marginal de expansão (energia) e o custo marginal de expansão (potência). Com isso, indica, respectivamente, quanto custaria acrescentar 1 MWh e 1 MW à oferta. Para o ministro do TCU que polemizou, a soma dos dois custos marginais, ou algo parecido, deveria ser utilizada pelo governo para precificar os ativos de geração da Eletrobras. Seria o equívoco conceitual sem precedentes.

Assim, não é um bom approach, ou é conceitualmente inadequado, o uso do custo marginal de expansão (potência) para precificar ativos de geração hidrelétricos, por todas as razões aqui mostradas.

(*) Doutor em Engenharia de Produção
e ex-diretor da Ane

COMPARTILHE ESTA NOTÍCIA
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email
Publicidade
NOTÍCIAS RELACIONADAS