Luiz Afonso dos Santos Senna (*)
Os habitantes do século 21 estarão entre os humanos que tiveram as melhores condições de vida em todos os tempos. A qualidade de vida neste início de século tem produzido profundas alterações na humanidade, mesmo considerando os elevados índices populacionais e a necessidade de serem superados empecilhos de ordem política, econômica e de inteligência. O desenvolvimento econômico e as inovações tecnológicas têm levado os mais diferentes países a observarem mudanças significativas. Novas legiões de populações de países em desenvolvimento ascendem a melhores condições de vida; multidões de chineses, indianos, vietnamitas e brasileiros, entre outros, passam a fazer parte da parcela da população que come e que consome dentro de uma realidade capitalista.
As metas do milênio estabelecidas por organismos internacionais como a ONU preveem a erradicação da fome nas próximas décadas. Como consequência inevitável do desenvolvimento econômico, e acompanhando a redução da miséria, assim como a um aumento dos preços de alimentos resultante de uma inflação de demanda, também o aumento do uso das infraestruturas.
O novo marco do saneamento
A entrada em vigor do novo marco do saneamento é o caminho para um salto civilizatório no país, fundamental para o desenvolvimento social e econômico. A expectativa é que em 2033 o Brasil atingirá as metas de acesso universal a esses serviços. Para tanto, foi estruturado um amplo e ambicioso programa de investimentos e aumento da eficiência na oferta de serviços, em que o foco central é a participação privada. Os principais benefícios que os brasileiros passam a ter, a partir de concessões e PPPs do saneamento à iniciativa privada, incluem maiores investimentos em menor tempo, maiores níveis de qualidade para mais pessoas em uma velocidade maior, metas claras a serem atingidas, garantia de expansão dos serviços e utilização de novas tecnologias.
As convicções sobre investimentos eminentemente públicos na infraestrutura têm sido revistas em decorrência de vários fatores, mas principalmente devido à escassez crescente de recursos. Além da insuficiência de orçamentos públicos, também são fatores relevantes os magníficos avanços da ciência, da tecnologia, da capacidade de gestão, das novas configurações da organização social, política e econômica e da globalização. Em um contexto em que a infraestrutura disputa recursos com outros setores como os da área social, torna-se evidente a necessidade de novas e eficientes formas de financiamento, capacidade de gestão, transparência e criatividade técnica, que serão partes essenciais e das preocupações dos tomadores de decisão.
O acesso universal já foi obtido em outras infraestruturas. O maior e mais representativo exemplo é o setor de telecomunicações. De uma realidade de mercado monopolista operado por estatais, em que predominava a escassez de serviços, preços absurdos, filas para aquisição de um telefone, mercado paralelo e péssima prestação de serviços, ocorreu uma verdadeira revolução, em que atualmente existem mais telefones do que pessoas no país, o que define acesso universal, o mesmo pretendido pelo saneamento em 2033. Setores como transportes, mobilidade urbana e logística ainda se encontram em níveis muito atrasados e carecem de um choque de eficiência e investimentos.
Energia e telecomunicações
As mudanças substanciais no provimento de infraestrutura levaram a que setores como energia e telecomunicações, sofressem alterações radicais na forma de prover serviços, tornando-os acessíveis a todas as camadas da população e propiciando a eficiência e qualidade necessária para que o setor produtivo estivesse à altura de seus concorrentes globais. Esta verdadeira revolução teve por base a qualificação do setor público nas respectivas áreas, a ênfase em instituições regulatórias e, principalmente, a participação privada na provisão de serviços de infraestrutura, normalmente mediante concessões feitas através de processos licitatórios. A iniciativa privada foi chamada para complementar os insuficientes recursos públicos, bem como aportar capacidade gerencial compatível com o restante das atividades econômicas que fazem uso da infraestrutura. Obviamente, a participação privada não se constitui em uma panaceia, e os governos necessitam claramente dispor de fontes de financiamento consistentes e confiáveis para prover a infraestrutura que permanece sob a gestão pública.
A tecnologia e as técnicas de gestão, que incluem a adequada governança corporativa, influenciam todos os setores da atividade humana e mudam dramaticamente a realidade. No caso da infraestrutura, o significativo avanço observado em vários países só foi possível graças à utilização dos conceitos subjacentes de economia de escala, de escopo e de integridade da rede. A falta de escala é exatamente o que levou Chadwick, um personagem fundamental na história da regulação, a identificar a necessidade de que em infraestrutura (utilities) a disputa deve ser pelo mercado e não no mercado. Daí a necessidade de entes reguladores plenos, equidistantes, que assegurem a harmonia entre os vários stakeholders (usuários/consumidores, governo e concessionários), e que não haverá a imposição do chamado market power por parte de qualquer um deles.
A crise das agências reguladoras
Concessões de serviços públicos referem-se à gestão de fluxos de caixa que contém deveres (investimentos, manutenção e operação do ativo público em níveis de qualidade pré-fixados) e direitos (tarifa), em que um contrato robusto é a figura central. Nele estão definidas regras, direitos, deveres e todas as demais obrigações referentes à prestação de serviços que se estenderão por períodos que ultrapassam oito governos (em uma concessão de 30 anos), assim como os riscos, identificados e alocados às partes que melhor lidam com os mesmos.
O país enfrenta hoje uma séria crise em relação a suas agências reguladoras. Iniciativas em todas as esferas têm demonstrado um furioso apetite por submeter as agências a seu comando, retirando delas o que lhes é mais precioso e vital: a independência e autonomia. Tal ocorre nos poderes executivo e legislativo, nas instâncias federal, estaduais, municipais e intermunicipais, assim como nos órgãos de fiscalização, com a observância despreocupada do poder judiciário. Entre as tentativas de capturas, predominam ações como indicações de corpos diretivos com componentes sem a necessária qualificação, contingenciamentos de orçamentos, remunerações inadequadas do corpo técnico (que gera evasão), e subordinação do corpo jurídico às procuradorias federais e estaduais.
O futuro sustentável do Brasil, em seu sentido mais amplo (ambiental, econômico/financeiro e de governança), passa necessariamente por serviços acessíveis e eficientes de saneamento, energia confiável, disponibilidade de transportes, logística adequada e mobilidade urbana competente, com recursos financeiros constantes, com qualidade e quantidade necessários, e com plena eficiência na entrega desses serviços.
Infraestrutura é a base sobre a qual a economia acontece e sob a ótica de qualquer indicador relevante, o Brasil ainda está na pré-história em relação a sua infraestrutura. A gestão eficiente e inteligente das redes é ainda questionada, por vezes por quem menos poderia fazê-lo: os poderes da república, que defendem privilégios do passado e a manutenção de arranjos produtivos ineficientes, como é o caso das empresas estatais.
O ano de 2033 poderá vir a ser um marco de um salto civilizatório no país. Porém, falta muito ainda a ser feito. Não basta apenas desejar que tal ocorra. É preciso assegurar estabilidade regulatória, com a gestão pública sendo conduzida de forma articulada, inteligente e republicana, com base no conhecimento, na competência e na sabedoria.
Ainda estamos na pré-história. Nosso grande desafio é vencer esta etapa civilizatória.
(*) Professor Titular da UFRGS, Pós-Doutor pela Universidade de Oxford, PhD pela Universidade de Leeds, Inglaterra, Formação Executiva em Harvard, foi Diretor da ANTT e Conselheiro-Presidente da AGERGS.